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CADERNOS DE AFETOS - páginas de viagens

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[ saia de casa para caminhar, deixando para trás qualquer pensamento de rotina;

[[ durante o deslocamento, não planeje o percurso, siga apenas os ritmos do corpo e da cidade;

 

[[[ atente para a qualidade do ar, aguce a percepção;

[[[[ mantendo-se neste estado, prossiga em movimento até encontrar um dos sinais indicados nestas instruções, podendo alterar apenas a velocidade do andar (o uso de mapas e GPS só é permitido em caso de mal estar);

[[[[[ pare imediatamente ao encontrar lufada, vento, brisa ou diferença qualitativa no ar relacionadas ao sentido do olfato;

[[[[[[ inspire e expire profundamente;

[[[[[[[ identifique o estímulo olfativo encontrado, descreva-o apontando em caderneta ou papel;

[[[[[[[[ a seguir, acione o sentido visual, girando sobre o próprio eixo num ângulo de 360 graus;

[[[[[[[[[ enquanto gira, encontre imagem que queira registrar;

 

[[[[[[[[[ após o registro da imagem (desenho. fotografia, celular), prossiga o passeio utilizando as mesmas instruções sob itens 1 a 9 por tempo ilimitado.

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Ao final da pandemia de COVID-19, recém abertas as fronteiras do Chile, viajei para Santiago, onde fiquei 15 dias. Já se podia sonhar com um respiro fora das máscaras sanitárias ou embalar utopias. Era setembro de 2022. 

Fiquei hospedada em uma casa em forma de barco na Providência, antiga residência de um bispo, segundo disse a proprietária que me alugou um quarto com abertura para um pátio interno.

Acredito que por causa dessa sacada, um gato me adotou. Ele empurrava a porta e vinha se aconchegar na cama, quase todas as noites, até sua infeliz morte por atropelamento em uma manhã gelada. 

Antes da morte do gato, no primeiro passeio a pé, encontrei uma cidade peculiar. Chamaram atenção os resquícios do movimento de rua de 2019. Nas praças e avenidas vi o que restou da passagem daqueles ventos já dissipados, emanações rarefeitas e moribundas das manifestações populares que eles chamam de estalido social.

Muitas fachadas conservavam tapumes grafitados, utilizados para proteger a propriedade privada da fúria e da força populares. Apareciam aqui ou ali vidros estilhaçados, equipamentos urbanos destruídos envoltos em faixas sinalizando perigo. Objetos e artefatos de guerra eram exibidos em museus e memoriais.  Arte sobre o tema, exibida em seus espaços próprios, como o Museu de Arte Contemporânea e o Centro Cultural Gabriela Mistral, conhecido como GAM.

Certa hora andava perto do Cerro Santa Lucia, quando fui puxada pelo braço para dentro de uma galeria, por pessoas assustadas, enquanto passava um grupo de manifestantes. Estava distraída e, do nada, um corre-corre na calçada em direção a estabelecimentos comerciais cujas portas rolantes de aço iam sendo fechadas uma a uma. Esperei dentro de um lugar desses o movimento se dissipar,  espiando pelos buraquinhos. A avenida ficou deserta, exceto pela presença da polícia de choque, além dos manifestantes que já se dissipariam. Depois fui aconselhada, sob incisivos argumentos amedrontadores, não seguir na mesma direção. 

Nesses dias a cidade já estava contaminada pela atmosfera resultante do rechaço plebiscitário  ao novo texto constitucional que, para mim, soou como um retumbante malogro de uma promessa emancipatória, tornando  mais tristes os espaços públicos.

Desapontada  pelas circunstâncias políticas do país (...estalido, constituinte, plebiscito), pois torcia que as coisas houvessem passado de outra forma,  observei  que estava diante de uma velha cidade velha. Desejava encontrar, talvez... uma outra cidade. Seria uma cidade invisível transbordando vida e leveza?  Sim, claro! Quem não gostaria de ver tal invisível,  tal indescritível cidade?

A partir de então,  esforcei-me bastante em dedicar um momento de cada um dos dias que seguiriam ao desafio de escapar aqui ou ali da experiência urbana automática, para acessar lugares fora da atmosfera  que encontrei no primeiro dia.

Circular pelas ruas e praças e encontrar nelas atmosferas urbanas novas  parecia improvável. Propus-me, então, a caminhadas diárias guiadas por um jogo de instruções que ainda não havia experimentado.

Foi assim que escrevi dez instruções para uma cidade nova, escolhendo com um jogo de dados o olfato, entre os cinco sentidos, como o ativador  dos  lugares pelos quais iria passar.  Se o dado caísse com o número seis para cima,  seria repetida a jogada.  

Embora o desafio tenha sido íntimo e pessoal, o jogo pode ser compartilhado com quem sentir os mesmos impulsos de caminhar na cidade para  encontrar locais "em suspensão", deixando-se levar por afetos ordinários vistos de outra forma.

As instruções que segui passo a passo imitando derivas* de outras épocas, tornaram-se divertidas para mim, ainda que levadas muito a sério.

Instruções para uma cidade nova em dez passos

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